terça-feira, 4 de novembro de 2008

Capítulo doze: um corpo... sem órgãos...


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A última linha de indagação a ser tratada por Orlandi (2004) é considerada a linha filosófica mais contemporânea a respeito do corpo. Nela a preocupação não está propriamente no corpo, mas no que se processa no encontro dos corpos, o “Corpo sem Órgãos”. A questão principal desta linha é saber como os autores Deleuze e Guattari conseguem reunir desejo e corpo sem órgãos. Aqui articula-se os fluxos e cortes de fluxos da produção desejante, produção na qual estão imersos homem e natureza, produtividade caracterizada pelo produzir sempre o produzir, produção de produção. Não se pode perder aqui a essência da conectividade desejosa.
Cria-se um lugar que se espalha pelos intervalos e interstícios da própria produção desejante, um lugar livre de cortes e não ainda fluxo, um “puro fluido em estado de liberdade e sem corte, deslizando sobre o corpo pleno”, um entre aquém e além de uma organicidade que molda as máquinas desejantes que a pressupõem. Lugar complexo de um “corpo pleno sem órgãos”, esse algo surgindo como “pausa”, bem no “meio do processo”. “Um corpo “acoplado à produção”, mas não sendo mero instrumento dela, este corpo sem órgãos não seria aqui, sinônimo de improdutividade, pois segundo o autor ele estaria reinjetado na produção” (Op. Cit., p.10).

O corpo sem órgãos seria pensado fora de linhas que poderiam conectá-lo a certas concepções que a tradição anterior ou recente armou a propósito do corpo: “o corpo sem órgãos não é a testemunha de um nada original, nem também o resto de uma totalidade perdida. Não seria uma projeção; nada a ver com o corpo próprio ou com uma imagem do corpo”(Op. Cit., p10). No caso da linguagem, o corpo sem órgãos aparece, por exemplo, como “sopros e gritos”, estes “blocos inarticulados” que irrompem nos fluxos das “palavras fonéticas”.
O autor ressalta que se não há desejo sem pelo menos um corpo sem órgãos, se os corpos sem órgãos são pensados como pressupostos dos encadeamento de fluxos e cortes de fluxos desejosos, é porque eles ocorrem como imantação nas linhas de fuga, justamente as linhas pelas quais fogem os agenciamentos desejosos, essa potência de conectar qualquer coisa a qualquer outra. “Criar para si corpos sem órgãos é experimentar, graças à variações dos encontros, pois os corpos sem órgãos podem oscilar desde a mais suave fluidez até o derradeiro mergulho numa intensidade vulcânica”(Op. Cit., p.10).
A idéia de corpos sem órgãos seria a de singulares imantações entre linhas de fuga, um agenciamento desejoso comportando estado de coisas e corpos, fluxos enunciativos e linhas de fuga multidirecionadas que se dispersam em conectividades. O CsO são conjunções de fluxos, reuniões momentâneas que operam entre a funcionalidade do corpo orgânico e a intempestiva conectividade desejosa, mas sem se confundirem com a intencionalidade do corpo próprio ou com o corpo investido de saberes e poderes. Ele aparece aqui como a consistência de passagens e ocasiões de encontros, é campo de imanência do desejo. Aqui o desejo deseja a vida e os órgãos da vida são máquinas de investimento e reinvestimento do desejo.

O autor enfatiza o “plano de consistência próprio do desejo” ou “campo de imanência do desejo” que é privilegiado porque somente nele, dizem os autores, é que um corpo sem órgãos se revela pelo que é: conexão de desejos, conjunção de fluxo, contínuo de intensidades”.

A construção de um corpo sem órgãos exige uma espécie de centelha seletiva faiscando numa promiscuidade de diferenças que acontece “em formações sociais muito diferentes” e pode acontecer nos agenciamentos perversos, artísticos, científicos, místicos, políticos, por fim, agenciamentos que “não têm o mesmo tipo de corpos sem órgãos”. Este campo de imanência não se trata de um “interior ao eu” nem vem de um “eu exterior ou de um não-eu”, este escapa da alternativa interior/exterior. Ela é remetida aqui a um “fora absoluto” que marca a radical estranheza do plano de imanência chamado corpo sem órgãos em relação ao corpo orgânico. Quando assoma a estranheza, é como se o corpo orgânico, com órgãos, fosse levado ao limite da perda de sua organicidade.

Quando nos encontros fluem corpos sem órgãos, temos acontecimentos intensivos que não redundam simplesmente numa supressão de órgãos. Os órgãos são intensidades de tal modo que se tornam, nesse entretempo de eternidade independentes da “forma de organismo”. Os órgãos entram num disfuncionamento intensivo nessa momentânea suspensão da funcional necessidade que os liga à forma orgânica. Criar corpos sem órgãos implica cuidar dos encontros e não simplesmente afundar-se em cada órgão, os órgãos são momentaneamente liberados da forma de organismos, das relações estruturais em que eles funcionam em consonância com necessidades vitais.
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