quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Capítulo vinte e cinco: uma Semiótica das despalavras...


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Para Pierce, toda e qualquer produção e realização humana é uma questão semiótica. Tudo o que aparece à consciência se faz numa gradação de três propriedades ou elementos formais de toda experiência. A Qualidade que corresponde ao acaso e à variação espontânea. A Reação que corresponde à ação e reação dos fatos. E a Representação que seria a mediação ou processo de devir pela aquisição de novos hábitos. Tais categorias são modos de operações do pensamento que se processam na mente. Tais categorias se apresentam como três modalidades possíveis de apreensão de todo e qualquer fenômeno.

Aqui, neste trabalho, faremos uma análise de um ensaio fotográfico (linguagem não- verbal) chamado “Despalavras do corpo e suas metáforas...”. A inspiração para o nome deste ensaio veio de um poema de Manoel de Barros chamado “Despalavra” onde o autor fala que atingiu o reino das imagens, o reino da despalavra, onde todas as coisas podem ter qualidades humanas, onde coisas podem ter qualidade de pássaros, onde pedras podem ter qualidade de árvores. Para ele os poetas devem aumentar o mundo com suas metáforas e compreender o mundo sem conceitos, que os poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por afeto..

O ensaio é mostrado como uma única imagem composta por várias. Um corpo formado por partes. Assim como o corpo. Sua idéia inicialmente seria afetar o expectador com o possível desconhecimento das partes que compõem a imagem. A idéia do ensaio seria “ir do corpo ao corpo”. Com o corpo que enxergamos, nos fazer enxergar e despertar a idéia de que o corpo se torna invisível na rotina de tanto investimento em uma comunicação visual voltada ao consumo e ao comercial. Investimos tanto numa imagem corporal que acabamos por nos tornar um conceito mais simbólico que subjetivo. Esquecemos de ser ícones, de ser criação e nos tornamos leis.

A primeira modalidade é a Primeiridade que seria a consciência imediata tal qual é qualidade de ser e sentir, sentimento não analisável, o que dá sabor, tom e que se oculta ao pensamento. É presente e imediato, não articulada em pensamento e ao ser afirmada perde sua inocência característica. Estados de possibilidades, aberta ao mundo, consciência passiva sem EU, liberta de policiamentos, autocontroles, comparações interpretações ou análises. Qualidade de sentimento, de apreensão das coisas que aparecem, estado-quase, ainda possibilidade de ser. A vida está prenhe de possibilidade de instantes fugazes em que a qualidade de sentir assoma como um lampejo, e é como se nossa consciência e o universo inteiro não fossem, naquele lapso de instante, senão uma pura qualidade de sentir. O signo aqui, aparece como ícone, um quase-signo, onde as qualidades não representariam nada, apenas se apresentariam. Faculdade de ver o que está diante dos olhos. São formas e sentimentos. Relação de analogia com seu objeto, similaridade. O ícone é signo de algo, é signo aberto, criação, espontaneidade, liberdade (arte). Este ensaio mostra o corpo através de imagens, partes (paradigma, parataxe, possibilidade, analogia...) que o trazem em vários ângulos, de tal forma que este se perde em sua forma original. Aqui a primeiridade seria termos a possibilidade de uma visão do corpo a partir de ângulos pouco vivenciados, onde a certeza de suas partes se perde na permissão de várias possibilidades de várias similaridades, inclusive porque aqui o corpo ainda não é reconhecido como tal. Uma sensação ou qualidade de dobras e de desdobramentos, tempo presente, movimentos, cores, texturas, volumes, luzes e sombras, formas abstratas é que compõem o cenário da primeiridade.

A Secundidade seria a categoria em que a consciência reagiria em relação ao mundo, a materialização do fenômeno, comoção que não se confunde com sensação. Efeito produzido por uma experiência, estado de choque, surpresa, conflito, violação da inércia de um estado anterior, o que move o pensar, experiência dualista. Processo, mediação interpretativa do acontecimento num tempo passado onde sua concepção lógica seria de relação. O signo aqui, se apresenta como índice real, concreto, singular e só funciona como signo quando alguém o interpreta. Está habitado de ícones e funciona apontando para uma outra coisa de que é parte. Tem uma relação direta com seu objeto, como uma ponte. O corpo aqui é desconhecido como tal. Ou percebido como desconhecido. Em suas formas abstratas permite uma vivência de conflitos onde não se sabe o que é aquilo que se mostra. Podemos pensar: “Sim, isso se parece com partes do corpo... mas que partes são essas?” Aqui a textura, a forma, as dobras e dobraduras, as cores etc., começam a ganhar corpo. Mas que corpo?

A Terceiridade seria a síntese intelectual, a camada de inteligibilidade, pensamento em signos que representam e interpretam o mundo, seria a elaboração cognitiva que nos traz idéia de um signo ou representação. Aqui, traduzimos um objeto de percepção em um julgamento de percepção. Representamos interpretações em outras representações que segundo Pierce, seria o Interpretante da primeira, ou seja, o signo seria um primeiro, o objeto o segundo e o interpretante um terceiro. O significado de um pensamento ou signo é um outro pensamento. Aqui, o signo é de lei, portador de uma lei que determina que aquele signo represente seu objeto, não é singular, mas geral. Relação convencional com o objeto de contigüidade e subordinação, hipotaxe (ciência e lógica). O símbolo é para alguma coisa. Mas que símbolo seria esse? Isso parece pele, poros, partes de um corpo. Isso é um corpo - uma síntese, concepção consciência sintética, experiência mediatizada: “O meu corpo.” Um corpo que tenho e que não reconheço. A sensação de incerteza e o desconhecimento do próprio corpo talvez seja o resultado na terceiridade. O “corpo” não se conclui tão certamente na terceiridade, porém, ganha certa consistência de ser um corpo. Aqui o corpo é um símbolo. Um corpo de fluxos, indefinido, cheio de dobras e possibilidades, mas um corpo... Um corpo flexível, impreciso e desconhecido, mas que tem formas e que é ativo na construção de conceitos, de signos e símbolos. Um corpo que vê o mundo, um mundo produzido a base de conceitos visuais em tamanha quantidade, mas, que faz do corpo cego, que faz do corpo o desconhecido e desconhecimento de si mesmo. Aqui, o corpo pode tornar-se palavra, ou tornar-se verbo, porém, seria impraticável conjugar-lhe no tempo.

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