quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Capítulo vinte e seis: Por Tiago: Fragmento Primeiro: Perverção...

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Deleuze, ao aprofundar o pensamento ontológico, nos remete à dimensão do impessoal onde encontramos as idéias de multiplicidade e singularidade. Então estamos diante de uma teoria da gênese do ser. Não pretendemos entrar nos detalhes dessa teoria devido a sua densidade, mas queremos pensar que, ao sermos lançados na dimensão dos processos de formação pré-individuais, podemos notar que o indivíduo, “o pessoal”, o que conhecemos por unidade identitária é apenas uma configuração de partículas na dimensão das multiplicidades e singularidades que se fixou; ou que o sujeito é um produto estancado (jurídico) de movimento molecular e que a partir dele começa-se a produzir todo um processo de estancamento do real. Em Mil platôs, quando se fala de multiplicidade ou multiplicidades, estamos na impessoalidade dos acontecimentos , no que eles têm de coletivo e singular. É no âmbito dessas pré-formações sempre incompletas, porque não têm fins a alcançar e nem início fundamental, que se encontram as forças em movimento intenso de partículas que se multiplicam de infinitos modos (universo expansivo). Eis aí, o campo dos possíveis reais. O conceito de multiplicidade não combina com a idéia do “um” (Diferença e Repetição), essa oposição se dissolve no momento em que Deleuze concebe como imediata “a imanência recíproca do múltiplo e do um” (ZOURABICHVILI, 2004, p. 71).

Ao que nos parece, quando se pergunta sobre as possibilidades de novas formas de revolução corremos o risco de recairmos sobre velhas formas de organização, talvez seria mais interessante perguntar pelos modos de expressão que poderiam provocar deslocamentos, mesmo em níveis moleculares, que não chegassem a se tornar uma forma, um modelo. O problema muitas vezes está em como se coloca a questão e em que limite ela nos conduz a uma prática que se possa dizer revolucionária. Em certo ponto, nossos desejos contêm elementos pré-formados, ou condicionados que o formalizam dentro de uma prática da vida: ainda carregamos um modelo de Estado em nossa forma de sentir, desejar e perceber as coisas. O Estado não interioriza o corpo sem também ser interiorizado pelo corpo. Podemos afirmar que o corpo é um quantum de possibilidades abertas enquanto território marcado e potência de desterritorialização ao mesmo tempo; afetado por poderes de aprisionamento e fonte potente de afecção (Espinosa). No corpo, o Estado se realiza pela interiorização e tende a fechá-lo em séries de repetição motora, ao passo que os devires são coexistentes a esses estados rígidos e fechados, mas que exercem uma força a partir do próprio corpo pro-jetando para um fora aberto de infinitos possíveis.

No plano das intensidades, do devir-animal ao devir mulher e devir-criança, o corpo realiza uma modulação dos graus de potência ou desterritorialização que, em seu pico mais alto, atinge ao que Deleuze chamou de devir-imperceptível, devir-molécula, devir-todo-mundo (Mil Platôs 4). É nesse movimento do desejo que estão os coeficientes de desterritorialização; na desmedida do que representam para a capacidade de criação possível; onde reside o processo de “diluição” do sujeito, de sua forma-estado (Mil Platôs 5) que estamos chamando aqui de antijurídico. A realização desse fora do corpo-Estado no interior de sua forma que tende a corrompê-la, ou a fazer o corpo delirar lançando-se num movimento de deriva: é o que podemos constatar como resistência do próprio corpo. Aqui, resistir já se tornou uma prática da existência. Dado o arrebatamento do corpo rígido, normalizado, estatizado, estratificado, pelo movimento que o desloca e desorganiza suas funções elevando seus afectos a um limite de fronteira, entendemos esse processo como: perversão.


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O conceito de multiplicidade tem sua origem no pensamento de Bergson e diz respeito ao par conceitual: atual (matéria) e virtual (duração). A atual e virtual correspondem dois tipos de multiplicidades: uma é divisível na matéria a outra é englobada na memória intensiva (duração). Mesmo sendo bergsoniano, Deleuze se utiliza desse conceito de maneira muito própria. Ver Maciel, O Todo Aberto: tempo e subjetividade em Henri Bergson, p. 49-52.




>> Tiago de Andrade Coelho <<


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