quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Capítulo vinte e sete: Pablo Neruda indicado por Mariana:

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Ritual das minhas Pernas


Longamente fiquei a olhar minhas longas pernas,
com uma ternura infinita e curiosa, com a minha costumeira paixão,
como se tivessem sido as pernas de uma mulher divina
profundamente afundada no abismo do meu tórax:
pois, na verdade, quando o tempo, o tempo passa,
sobre a terra, sobre o teto, sobre minha impura cabeça,
pois passa, o tempo passa, e na minha cama não sinto à noite
que uma mulher está respirando,
dormindo nua a meu lado,
aí, estranhas, obscuras coisas ocupam o lugar da ausente,
viciosos, melancólicos, pensamentos
semeiam pesadas possibilidades no meu quarto,
e olho assim as minhas pernas como se fossem de outro corpo
e forte e docemente estivessem agarradas a minhas entranhas.

Como talos ou femininas, adoráveis coisas,
sobem dos joelhos, cilíndricas e espessas,
com um turvo e compacto material de existência:
como brutais, gordos braços de deusa,
ou árvores monstruosamente vestidas de seres humanos,
como fatais, imensos lábios sedentos e tranqüilos,
são aí a melhor parte de meu corpo:
o inteiramente substancial, sem complicado conteúdo
de sentidos ou traquéias ou intestinos ou gânglios:
nada mais que o puro, o doce e o espesso da minha própria vida,
nada mais que a forma e o volume existindo,
guardando a vida, no momento, de maneira completa.

As pessoas passam pelo mundo atualmente
sem se lembrar sequer que possuem um corpo e nele a vida,
e tem-se medo, tem-se medo neste das palavras que designam o corpo,
e fala-se favoravelmente da roupa,
de calças se pode falar, de ternos,
e de roupa íntima de mulher (de meias e ligas de "senhora"),
como se pelas ruas fossem os enfeites e as roupas vazios por completo
e um escuro e obsceno guarda-roupas ocupasse o mundo.

Têm existência as roupas, cor, forma, destino,
e profundo lugar nos nossos mitos, lugar demais,
móveis demais e quartos demais há no mundo,
e o meu corpo entre e sob tantas coisas abatido,
com um pensamento fixo de escravidão e de correntes.

Bem, os meus joelhos, como nós,
particulares, funcionários, evidentes,
separam as metades das minhas pernas de uma forma seca:
e na realidade, dois mundos diferentes, dois sexos diferentes
não são tão diferentes como as duas metades das minhas pernas.

Do joelho até o pé, uma forma dura,
mineral, friamente útil, aparece,
uma criatura de osso e persistência,
e os tornozelos não passam do propósito nu,
a exatidão e o necessário dispostos em definitivo.

Sem sensualidade, curtas e duras, e masculinas,
são aí as minhas pernas, e dotadas
de grupos musculares como animais complementários,
e aí também uma vida, uma sólida, sutil, aguda vida
sem vacilar aparece, aguardando e atuando.

Nos meus pés coceguentos,
e duros como o sol, e abertos como flores,
e perpétuos, magníficos soldados
na guerra gris do espaço,
tudo termina, a vida termina definitivamente nos meus pés,
o estrangeiro e o hostil aí começam:
os nomes do mundo, e o fronteiriço e o remoto,
o substantivo e o adjetivo que não cabem no meu coração
com densa e fria constância aí se originam.

Sempre,
produtos manufaturados, meias, sapatos,
ou simplesmente ar infinito,
haverá entre meus pés e a terra,
extremado o insulado e solitário do meu ser,
algo tenazmente suposto entre a minha vida e a terra,
algo abertamente invencível e inimigo.


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